Na última sexta-feira, dia 22, a Crocus City Hall, uma casa de shows localizada em Krasnogorsk, região metropolitana de Moscou, capital da Rússia, foi alvo de um atentado terrorista. O ato se deu momentos antes da apresentação de uma banda de rock local chamada Picnic, e deixou centenas de feridos e mortos. Até às 15h00 do dia 25, autoridades locais contabilizavam 137 mortos e outras dezenas de feridos.
Conforme relatos de pessoas que estavam no local e de agentes do serviço russo de segurança (FSB), o atentado foi executado por um quarteto, com a ajuda de outras sete pessoas. Todas foram presas. Os terroristas adentraram o lugar vestidos com uniformes militares camuflados, fizeram disparos com armas de fogo e usaram explosivos que deixaram o estabelecimento em chamas. Passadas algumas horas, o Estado Islâmico na Província de Khorasan (ISKP) assumiu a autoria do atentado.
Antes de tratar acerca das motivações do ato terrorista, é crucial elencar algumas características desse ator não estatal relevante para a dinâmica regional e a segurança internacional da Ásia Central e de demais países majoritariamente muçulmanos. O ISKP é um afiliado regional do Estado Islâmico (EI) que atua no Afeganistão e Paquistão e que almeja fundar um califado mundial com sede na província de Khorasan. É formado por muçulmanos sunitas salafistas, isto é, adeptos da religião islâmica que fazem uma leitura literal do Corão e intentam viver conforme os “predecessores piedosos” – sunitas que compuseram basicamente as três primeiras gerações da comunidade muçulmana e que são, para eles, exemplos de uma vida correta. É, consequentemente, um Grupo Salafista Jihadista (GSJ), vale dizer, uma organização extremista islâmica que entende que o jihad possui uma perspectiva estritamente militar e que prega tanto a defesa e a expansão dos domínios islâmicos, quanto a luta contra chefes de Estado ou de governo muçulmanos tidos, por eles mesmos, como apóstatas.
Questões de cunho ideológico, religioso e geopolítico principalmente conformam a relação entre a Rússia e o EI – e seus afiliados regionais, como o ISKP – e, portanto, permitem entender as razões por trás desse atentado terrorista. Nesse sentido, cabe mencionar os laços militares entre o governo russo e o Talibã (que é inimigo do próprio ISKP); os diálogos que se dão entre Moscou e Jerusalém; a intenção do EI de estabelecer um califado mundial e; principalmente, a intervenção da Rússia, a partir de 2015, na atual guerra civil da Síria. Entre esses, dois se destacam dado suas consequências no entorno geográfico e no sistema internacional: os planos do EI para fundar um califado transnacional e a aproximação entre a Rússia e a Síria, no contexto da já citada guerra.
O projeto concernente ao califado global tem como objetivo não somente aumentar a projeção do EI no sistema internacional, mas também e consequentemente, alçá-lo ao status de líder do jihad global. Amira Jadoon, professora da Universidade Clemson, assevera que o objetivo do ISKP com o ato terrorista em questão é “evoluir para uma organização terrorista com influência global”. A especialista, ademais, postula que “Ao dirigir a sua agressão a nações como […] a Rússia, o ISKP não só confronta pesos pesados regionais, mas também sublinha a sua relevância política e o seu alcance operacional no cenário global”. Trata-se, então, de uma disputa hegemônica entre grupos terroristas islâmicos, sejam eles advindos das vertentes sunitas ou xiitas, fato esse que gera preocupação na Rússia que, como será visto no parágrafo posterior, apoia atores estatais e não estatais xiitas.
Os laços de amizade entre Putin e o presidente sírio Bashar al-Assad, evidentes também na guerra civil da Síria de 2011, ajudam de igual modo a explicar o atentado ao Crocus City Hall. Para o EI e o ISKP, desde 2015 o mandatário russo tem dado suporte financeiro e militar a sua contraparte síria com o intuito de minar a oposição ao governo de Assad e o próprio grupo terrorista islâmico. Segundo membros de tais grupos terroristas, o imbróglio entre as partes se dá, nesse contexto, por conta da propaganda russa e da opressão de Putin à fé islâmica e à comunidade muçulmana local. Colin Clarke, do Soufan Center, defende que o ISKP tem tido uma fixação pela Rússia nos últimos dois anos, criticando frequentemente Putin na sua propaganda”. Esse argumento é endossado por Jadoon, que afirma que “a Rússia é vista como um oponente chave” do EI, e que o próprio país “se tornou um foco da ‘ampla guerra de propaganda’” do ISKP. Fica evidente, portanto, que os citados fatores ideológico, religioso e geopolítico são peças-chave para entender o embate entre as partes.
O atentado terrorista do dia 22/3 é, portanto, ao que tudo indica, uma resposta do ISKP à política externa do Kremlim à comunidade muçulmana – e, especialmente, aos salafistas jihadistas que compõem o Estado Islâmico e seus braços regionais. Conforme Jadoon, “O envolvimento da Rússia na luta global contra o ISIS e seus afiliados, especialmente através das suas operações militares na Síria […] marca a Rússia como um adversário chave”, faz com que o conflito adquira vieses que extrapolam a conjuntura política, envolve atores estatais e não estatais e extrapola fronteiras nacionais.
Escrito por: David Neder Issa, Doutorando em Relações Internacionais (PUC Minas), mestre em Relações Internacionais (PUC Minas), especialista em Estudos Diplomáticos (CEDIN) e graduado em Relações Internacionais (Ibmec BH). Membro do Grupo de Estudos em Oriente Médio e Magreb (GEOMM), do Grupo de Pesquisa do Centro de Estudos em Política, Relações Internacionais e Religião (CEPRIR – CNPq/UEPB) e do Laboratório de Estudos em Oriente Médio (LEOM).
REFERÊNCIAS
CENTER FOR INTERNATIONAL SECURITY AND COOPERATION. The Islamic State in the Khorasan Province (IS-KP). Stanford: Stanford University, 2018. Disponível em: https://cisac.fsi.stanford.edu/mappingmilitants/profiles/islamic-state-khorasan-province. Acesso em: 23 mar. 2024.
Islamic State’s deadly Moscow attack highlights its fixation with Russia. The Guardian, Londres, 23 mar. 2024. Analysis. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2024/mar/23/theres-little-reason-to-doubt-attack-on-moscow-venue-was-by-islamic-state. Acesso em: 23 mar. 2024.
Moscow concert hall attack: Why is ISIL targeting Russia? Al Jazeera, Doha, 23 mar. 2024. Explainer. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2024/3/23/moscow-concert-hall-attack-why-is-isil-targeting. Acesso em: 23 mar. 2024.
O que se sabe sobre o ataque que deixou mais de cem mortos na Rússia; Putin diz que autores estão presos. BBC Brasil, São Paulo, 23 mar. 2024. Principais notícias. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp304g03j6ko. Acesso em: 23 mar. 2024.
WAGEMAKER, Joas. Salafism. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Religion. 2016.